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O Velho e o Mar - A história da perseverança humana

Um velho pescador retorna de mais um dia de trabalho com as mãos vazias. Há mais de oitenta dias não consegue pescar. Sua maré de azar o faz descender a um estado de miséria humana triste e sofrido. No entanto, com a ajuda de um jovem que aprendera tudo o que sabe sobre pesca com o velho, ele é capaz de sair ao mar uma vez mais. O mar, para o velho, não é um espaço competitivo e tormentoso, como para os outros pescadores. Ao contrário, ele o trata como uma amante, chamando-o por "Ela" e sempre a tratando com delicadeza e carinho.
"O Velho e o Mar" é um desses livros icônicos, repleto de uma sensibilidade ímpar e cativante. A narrativa é carregada com um valor pessoal, tornando o leitor não apenas participante da obra, por estar sempre ao lado do Velho, como também o torna confidente das lamúrias do autor, Ernest Hemingway.
Ernest Hemingway (1899/1961).
A temática de o Velho e o Mar vai muito além de uma simples história de pesca. É, essencialmente, a jornada de vida de Hemingway. O velho, isolado, encontrando conforto apenas no silêncio e no sossego "da" mar, é um retrato de si próprio. Após ter vivenciado duas guerras mundiais, sua vida tornou-se opaca e sem graça, desesperançosa e desgostosa.
Essa seria a marca de toda uma geração de escritores e poetas; tanto os integrantes da chamada "Geração Perdida", nos Estados Unidos, como os "Modernistas", na Europa e no Brasil, escreviam baseado nesse sentimento torpe gerado pelos horrores do início do século XX. Para ilustrar tal sentimento, retiro os versos do poema "Andorinha", de Manuel Bandeira:
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
Dessa forma, a maior parte dos textos dessa geração literária voltavam-se a uma temática pessimista. No entanto, o livro de Hemingway passa de uma tristeza melancólica para uma jornada de superação no momento em que, só em sua jangada no meio da mar, um peixe sinaliza ao velho um sinal de esperança ao fisgar a isca. 
A partir de então, o velho inicia uma luta física contra o imenso peixe na ponta do anzol e uma luta moral consigo mesmo. Inicialmente, o animal não se mostra ao pescador, sendo para o protagonista uma ameaça invisível. Com isso, dias e noites se passam, apenas com o velho sendo levado mar à fora.
O arco descrito simboliza a luta diária que os homens enfrentam com a esperança de serem recompensados no final, apesar de não terem prova do que irá ocorrer no futuro. De certa forma, o velho é o retrato dos soldados que marcharam nas duras guerra e deram seu sangue pela nação por simples fé de que fossem recompensados ao término do incessante sofrimento. E de certa forma, eles foram sim recompensados. 
Quando o velho por fim vence a força impressionante do peixe, todo o sentimento nele carregado é retrato do sentimento de uma geração inteira de combatentes que por fim se veem vencedores. Um imenso júbilo, uma alegria imensa carregada de um pesar e uma fatalidade. Ao mesmo tempo que o velho retira da mar uma de suas mais formosas criaturas, os soldados percebem sua humanidade se esvaindo pelo cano dos fuzis responsáveis pela morte de tantos outros soldados como eles.


Fotos da II Guerra Mundial. Em cima, foto de celebração devido ao fim da Guerra. Em baixo, o sofrimento dos soldados que voltaram feridos tanto física como moralmente.
  A morte do peixe e a morte da humanidade - ou da sensibilidade - até o final da história estarão vinculadas. Após o triunfo do pescador, ele regressa para a casa deslumbrado, lembrando-se e projetando tempos de paz.
No entanto, o desenvolvimento da trama começa a tender para um novo lado: o desespero de perceber que não se tem nada. O peixe, morto e carregado junto à jangada, é atacado por tubarões, que pouco a pouco vão consumindo a recompensa do velho. Ele, por sua vez, luta até suas últimas forças, mas não consegue impedir o inevitável.
Ao chegar a casa - sem peixe - encontra em si um enorme vazio. Então, ao seu encontro se dirige o jovem do início, e percebe que se estivesse junto com o velho, o trágico não teria ocorrido. O pescador apenas engole suas frustrações e descansa, pensando nos dias que se seguiriam.
O livro termina desse modo, e a partir daí, duas interpretações podem ser feitas. A moral óbvia, é claro, trata-se da insistência do homem perante a mar. Hemingway - o velho - após tanto sofrer, não abaixaria sua cabeça, e mesmo pessimista, persistiria.
Contudo, para aqueles que conhecem minimamente a jornada de vida do autor, a interpretação pode ir para outro caminho. O que Hemingway realmente busca aqui não é o trabalho, mas sim o descanso. A exaustão decorrente de toda sua vida, reforçada por todas suas perdas e desilusões (Hemingway se casou quatro vezes e teve um pai que havia se suicidado) faziam-no se transformar em uma pessoas desgostosa, assim como foi comentado ao ilustrar a Geração Perdida e os Modernistas.
No fim, Hemingway achou descanso apenas na ponta do fuzil de caça que utilizou para se matar no dia 2 de julho de 1961.
Atormentado e desamparado, o velho vive as mesmas frustrações do autor, encontrando conforto apenas na atividade da pesca. Talvez, assim como é para todo bom escritor, "a mar" de Hemingway era a escrita. Falo isso pois todos os homens necessitam de uma forma de se expressar, sendo isso para Hemingway ainda mais fundamental devida a toda sua experiência dramática de vida. Portanto, deixo ao fim deste texto um pequeno questionamento reflexivo. Qual é o esforço que fazemos para nos expressar? Será que compreendemos realmente a complexidade do sentimento do próximo?
Essas são apenas algumas das inúmeras reflexões que esse grande autor deixou para nós. Espero apenas que, após tudo, ele tenha alcançado o descanso almejado.


Ernest Hemingway, um velho "na" mar.

Texto de Lucas Barreto Teixeira


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